No capítulo X de "Cândido, Ou o Otimismo", romance "filosófico" escrito por Voltaire a bordo do navio que o conduzia ao Paraguai, o personagem título, relembrando o filósofo Pangloss, que imaginava ter visto morrer enforcado num auto-de-fé em Lisboa, dizia aos seus companheiros de viagem: "Vamos para um outro universo. É lá sem dúvida que tudo está bem, pois cumpre confessar que em nosso mundo não faltava o que chorar quanto ao lado físico e moral das coisas".
Plagiando Voltaire, atrevo-me a dizer que em nosso país não falta o que chorar quanto ao lado físico moral das coisas, principalmente da política. Há ainda outras coincidências entre essa obra de Voltaire e o ambiente político e o descompasso social, há séculos, vigorantes no Brasil.
Primeiro: é condição fundamental para que um político exerça um cargo eletivo nas esferas federal, estadual e municipal, seja no executivo ou no legislativo, que ele seja antes um candidato (esqueçamos os senadores biônicos, de triste memória). Apesar dos dicionários da língua português mais populares não apresentarem esta denotação para o substantivo candidato, registrando tão somente o significado corrente em nossa língua ("aspirante a emprego, cargo, vaga em determinada instituição, honraria ou dignidade, aquele que pleiteia um cargo eletivo"), a palavra se origina do vocábulo latino candidatus, que significa aquele que veste roupa branca, o que lhe dá, na origem, significado semelhante ao do adjetivo cândido ("alvo, imaculado, puro, sincero, ingênuo, inocente").
Segundo: empregando a ironia, Voltaire traz à luz os preconceitos, as desigualdades sociais, a ingenuidade do povo, as tiranias do Estado e da Igreja e, principalmente, a corrupção, questões muito atuais no cotidiano do país.
Terceiro: o escritor e filósofo iluminista se divide no otimismo exacerbado de Pangloss ("Tudo está bem quando tudo está mal") e o maniqueísmo de Martinho ("Eis como se tratam os homens uns aos outros") e confronta a amizade com o interesse, a benevolência com a filáucia, a sensibilidade com a brutalidade, a benquerença com a ganância, a ambição com a fé e o amor com o ódio. Um olhar mais apurado sobre a contaminada atmosfera política brasileira e sobre o desabrimento da nossa sociedade mostrará como é atual o pensamento de Voltaire.
A consciência coletiva, definida por Émile Durkheim como o "conjunto das crenças e dos sentimentos comuns à média dos membros de uma mesma sociedade que forma um sistema determinado com vida própria", foi totalmente eivada pelo nefasto absolutismo português, fomentando, assim, um círculo vicioso de causas e efeitos: os políticos sabem que a sociedade é frágil e faminta, então lhe atira as migalhas, como milho aos pombos, em toca de votos; e a sociedade se torna refém desses mesmos políticos.
Observem como se comportam os políticos e a sociedade brasileira. No fundo, há uma relação de promiscuidade entre ambos; a única lei que, no paradoxo brasileiro, é levada ao pé da letra é a lei (não escrita) de Gérson: "Gosto de levar vantagem em tudo, certo? Leve vantagem você também".
Parece claro para qualquer cidadão minimamente informado de que boa parte das campanhas eleitorais são financiadas por dinheiro sujo e sem lastro, proveniente de falcatruas, desvios e toda sorte de absurdos realizadas por maus políticos e assessores que tornaram-se parasitas da política, passivos ou ativos. A prática é algo recorrente e largamente divulgada pela imprensa. Quem lida perto do universo da política, sabe que corrupção é rotina nos bastidores do poder e por vezes dentro dos partidos políticos.
Contudo, muito pouco é feito para estancar esse descalabro. Com efeito os políticos e os candidatos que almejam uma boquinha, seguem driblando as Leis e a confiança do povo, certos de que nada ocorrerá com eles. E de fato nada acontece com eles. O povo, por sua vez, está envolvido hoje, ontem e sempre com o "pão e com o circo". O pão, os programas assistencialistas cuidam, o circo fica por conta da imprensa "chapa branca" e por conta das religiões oportunistas que aprisionam os fiéis e aproveitam da boa fé dos que são privados de instrução ou estão vulneráveis por questões circunstanciais. (depressão, desemprego, drogas, separações, alienação etc)
Se não bastasse, a justiça parece não enxergar os escândalos, trata a maioria das denúncias como "intrigas" fruto do jogo político, sobretudo nos níveis mais altos, de onde espera-se providencias. E por que as providencias não são tomadas"? Além da falta de instrumental, boa parte dos magistrados que militam nas instancias superiores foram indicados por membros do poder executivo ou do legislativo, (cargos políticos). Julgam os recursos, mas esquecem de se aprofundar nos autos. Usam critérios meramente políticos onde a Lei deveria prevalecer e ser implacável.
A título de informação, isso é uma reclamação recorrente de Juizes de primeira instâncias que pode ser conferida em qualquer tribunal dos 27 Estados da Federação. A reclamação é de que as decisões são frouxas quando deveriam ser duras. De sorte que a corrupção precisa ser tratada como crime hediondo, julgada de forma imparcial e sem interferências, inibindo os que confiam na impunidade. Para agravar, o que parece ser o fundo do poço, ainda existe, nos labirintos da justiça, as manobras de advogados inescrupulosos, lançando mão de "habeas corpus" e uma infinidade de artimanhas para livrar os "anjinhos" da cadeia, fazendo o crime de corrupção tornar-se algo compensador.
Mais do que punidos severamente com cadeia, esses cafajestes devem devolver com juros o que roubaram, ficando automaticamente inelegíveis para sempre. O episódio do Amapá é apenas uma pontinha do que acontece naquele Estado, para quem conhece, e representa uma prática comum de políticos que acreditam na impunidade, e que não deixa de representar também a realidade do Brasil, "coincidentemente", do Oiapoque ao Chuí.
José Aparecido Ribeiro - Licenciado em Filosofia, Bacharel em Turismo
MBA em Marketing - Consultor
Especialista em Assuntos Urbanos
CRA MG 0094 94
31 9953 7945 - BH - MG
Os caçadores de orçamento e a corrupção
Henrique Ziller *
O tema da corrupção pode ser abordado de várias formas. A que é aqui apresentada tem como ponto de partida o orçamento público, e aquele comportamento que os economistas definem como caçador de rendas, ou rent seeker. Em sua elaboração original, o conceito não inclui as atividades fora da lei. O conceito foi criado para definir a atividade de manipulação das regras do jogo de maneira a se garantir privilégio de determinados grupos de interesse.
Proponho uma utilização mais ampla para o conceito, de maneira a incluir todos aqueles que disputam recursos públicos – dentro ou fora das regras do jogo, numa compreensão que ficaria melhor definida como caçador de orçamento, ou budget seeker.
A ideia aqui é que, uma vez que existe um bolo de recursos oriundos da tributação – e esse bolo em nosso país é bem recheado –, surge uma disputa encarniçada por ele. Nesse jogo violento, é quase impossível, por exemplo, vingar a ideia do orçamento base zero, ou seja, uma situação ideal na qual seria possível começar a construir o orçamento do zero. Na prática, o que um órgão já tem de orçamento vai ser incrementado para o exercício seguinte em função do poder que aquele órgão, ou as autoridades que o dirigem, demonstrem, na condição de caçadores de orçamento.
No extremo da moralidade, teremos aqueles que lutam, por exemplo, para o aumento das verbas para os programas sociais, de educação e de saúde, por de fato acreditarem que essa é a melhor maneira de diminuir o fosso de desigualdade no país. Esses caçadores de orçamento estariam em posição altruísta extrema, não olham para os recursos com intenções de apropriação privada pessoal.
No extremo da imoralidade, seria possível posicionar alguns exemplos, mas vou eleger os caçadores de orçamento do plano político-eleitoral. Estariam aqui enquadrados todos aqueles que defendem mitos como a governabilidade, ou seja, a ideia de que não é possível fazer política no país a não ser permitindo a pilhagem do orçamento por grupos políticos aliados – se é que é possível utilizar o termo aliado para gente como essa, pois não são aliados de ninguém a não ser de si próprios e de seus interesses particulares. A esse conceito perverso juntou-se o messianismo político que afirma que tudo é permitido para aqueles que são os conhecedores e os praticantes do bem e, consequentemente, os redentores da nação brasileira. Ou seja, aos redentores da nação seria legítimo fazer o que for necessário com o orçamento público para sua manutenção no poder.
Conquanto haja um certo sarcasmo nas colocações acima, o ponto defendido é de que sempre existe uma justificativa usada pelos caçadores de orçamento no processo de legitimação da maneira como buscam garantir o orçamento público para si. Ou seja, sempre há uma justificativa na qual os caçadores de orçamento se baseiam para agirem como agem.
O que se propõe, portanto, é que tanto os puros como os pragmáticos, nesses dois exemplos acima, desenvolvem uma reflexão bem elaborada para justificar suas atitudes e posturas como caçadores de orçamento.
Entre esses dois extremos, da pureza e do pragmatismo, existem diversos tipos de atitude, e de justificativas, que os caçadores de orçamento desenvolvem, na luta para garantir o atendimento de seus interesses. Vamos a alguns exemplos.
O sindicato que busca o aumento de salário para sua categoria. Questiona-se se esses caçadores de orçamento não seriam os mais predatórios, na medida em que criam despesas correntes. Sinto-me à vontade para fazer essa crítica porque, na condição de sindicalista há alguns anos – incluindo aí a presidência da associação dos auditores federais de controle externo do TCU por três anos – já me dediquei muito a conseguir aumentos de salários para minha categoria. E com sucesso. Nossa justificativa básica é que se nossa carreira estiver com remuneração abaixo do Senado Federal, ou da Receita Federal, vamos perder nossos melhores quadros para esses órgãos. É um bom argumento que legitima, pelo menos para nós mesmos, o nosso próprio comportamento de caçadores de orçamento.
As autoridades de um órgão de controle, e servidores próximos a eles, ministram cursos sobre controle de recursos públicos recebendo pagamento com dinheiro público, por órgãos públicos que estão jurisdicionados a esse órgão de controle, e, em última instância, a essas autoridades. São caçadores de orçamento que procuram legitimar seu comportamento afirmando que não há nada de ilegal naquilo que fazem.
Podem-se citar outros exemplos, mas esses bastam para a reflexão aqui proposta. O que interessa, nesse momento, são algumas perguntas que essa realidade nos impõe:
1 - Qual é o limite a partir do qual passamos a entender que um caçador de orçamento se torna um corrupto?
2 - Aqueles caçadores de orçamento que agem estritamente dentro da lei, mas, manipulam as regras em favor de interesse privados podem ser considerados corruptos (os rente seekers, por exemplo)?
3 - Qual a abrangência que vamos dar ao conceito de corrupção?
Recebi ontem o seguinte e-mail:
“Espero que tenhas melhorado de saúde, posso afirmar sem medo de errar,
o maior tesouro que temos em vida!
Caro Ziller: Viajando com uma antropóloga brasileira radicada no
Canadá, ela me fez a seguinte afirmação, o Brasil para mudar a médio
prazo, só com uma ditadura de curto prazo colocando no paredão e
fuzilando 1000! como tratar da corrupção se trata-se de uma cultura?
Saúde,”
Respondi assim:
“Caro amigo,
A ditadura, ao final, piora as coisas, ainda que começasse bem.
Há 40 anos, matei um passarinho, com espingarda de chumbo. Todos os meus amigos matavam, com espingarda ou com bodoque. Hoje em dia, ninguém nem pensa em fazer algo assim: A CULTURA MUDOU!
Sabemos que essa é nossa luta, por isso mesmo precisamos focar mais nos jovens, adolescentes e crianças.”
Muitas vezes me parece que temos feito abordagens um tanto ingênuas da questão da corrupção, sem, por um lado, avaliar a questão em suas nuances, em seus aspectos sombrios, nos quais não é possível detectar com clareza o limite entre o comportamento legítimo dos caçadores de orçamento e o comportamento ilegítimo. Por outro lado, não consideramos que a crítica ao comportamento caçador de orçamento é uma tarefa espinhosa pois se trata de mudança cultural.
Coloquei no topo do comportamento imoral a corrupção política-eleitoral. Fazendo uma análise da prestação de contas do hoje governador Agnelo, relativa à eleição do ano passado, encontra-se o que se segue, a respeito dos grandes doadores da campanha:
- Galvão Engenharia – R$ 500 mil – ao todo, a empresa teria doado mais de R$ 10 milhões ao PMDB e ao PT. Há informações de que a empresa participa do empreendimento de Belo Monte.
- Leyroz de Caixas Indústria e Comércio – R$ 320 mil – é do Rio de Janeiro. Não foi possível localizar o site dessa empresa na internet. Contribuiu com R$ 560 mil para o PMDB.
- Hypermarcas S/A – R$ 300 mil – trabalha principalmente com medicamentos.
- M Brasil Empreendimentos Marketing Ltda. – R$ 300 mil. Não foi possível localizar site na internet. Segundo informações em diversos sites, a empresa levantou mais de R$ 67 milhões com fundos de pensão e está em nome de dois laranjas. Empresas farmacêuticas do grupo teriam sido beneficiadas pelo governador Agnelo quando ele estava à frente da Anvisa. A M Brasil recebeu R$ 13 milhões da Conab, recentemente. Não foi possível conseguir informações a respeito da atividade comercial dessa empresa.
- Serveng Civilsan – R$ 300 mil – empreiteira.
- Avansys Tecnologia Ltda. – R$ 300 mil – empresa baiana que veio para Brasília, da área de tecnologia da informação.
- União Química Farmacêutica Nacional – R$ 300 mil – é pivô de uma denúncia que teria sido protocolada no Ministério Público, recentemente, relativa a caso de corrupção eleitoral envolvendo o governador Agnelo.
- Diagnósticos da América – R$ 100 mil – laboratórios em Brasília.
Como é que se enfrenta essa realidade? E a partir de qual postura? Somos nós os puros a enfrentar os impuros? Talvez, em certa medida, sim. Mas, o passo inicial na luta contra a corrupção é uma autocrítica que faça avaliar todo e qualquer comportamento caçador de orçamento que se desenvolva, antes de se começar a apontar o dedo acusador.
Não se propõe uma desmobilização dos movimentos sociais de combate à corrupção, nem mesmo uma pausa para reflexão. O que se propõe é que a necessária mudança de cultura comece pelos próprios movimentos sociais. Há entidades de nosso movimento que hoje recebem dinheiro público. Será que esse comportamento é adequado? Ao combater a má utilização de recursos do orçamento acabamos nos tornando, igualmente, caçadores de orçamento, com justificativas bem fundamentadas. No entanto, faz sentido que quem fiscaliza o uso de dinheiro público utilize dinheiro público para isso?
Precisamos desenvolver uma cultura que separa com clareza os patrimônios público e privado, coisa que nunca aconteceu no Brasil, apesar de nos declararmos uma república, conceito que quer dizer res publica, ou coisa pública. A coisa continua sendo privada, de maneira justificada, ou seja, legitimada. Seguem algumas sugestões de atitudes e ações a serem tomadas pelos movimentos sociais de combate à corrupção:
1. Desenvolvimento de uma certa dose de positivismo. Ou seja, temos de ser capazes de, a partir de uma profunda autocrítica, definir o que é certo e o que é errado na gestão dos recursos públicos, no comportamento dos caçadores de orçamento. Entendo que, hoje, por exemplo, a luta acrítica por planos de carreira por parte daqueles que já estão no topo da remuneração do serviço público, sem pensar a questão no âmbito de uma política nacional de recursos humanos do setor público, é um comportamento caçador de orçamento nocivo ao interesse público.
2. Mobilização social para a implantação da cultura do controle social e da transparência, e para a denúncia e o enfrentamento da corrupção. Levantamento recente sobre as licitações promovidas pelo GDF concluiu que não existe transparência.
3. Entrincheiramento, ou seja, a busca de avanços por meio das pequenas vitórias, sabendo que não é possível derrotar o monstro em terreno aberto, e sabendo que ele tem armas de que não dispomos. Os movimentos sociais devem se unir em torno de propostas concretas com objetivos bem definidos: é preciso ter foco. Os avanços devem ser divulgados e celebrados. É necessário apoiar os governantes quanto às conquistas pontuais que obtêm, mesmo que não seja possível apoiá-los no todo de suas gestões.
4. Envolvimento político-partidário crítico. Os movimentos sociais têm sido bem-sucedidos, em, por exemplo, cassar prefeitos corruptos. No entanto, o sucessor usualmente também precisa ser cassado.
5. Enquanto vamos fazendo o enfrentamento, é indispensável dar ênfase e dedicar muitos esforços na educação das novas gerações, para criação do conceito e de valores que diferenciem
a coisa pública da coisa privada.
* Auditor concursado do Tribunal de Contas da União (TCU),
presidiu a União dos Auditores Federais de Controle Externo (Auditar),
mantém o blog http://www.ziller.com.br/blog/ e preside o Instituto de
Fiscalização e Controle (IFC).
“Corrupção, Dimensão do homem, Antropologia filosófica”
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