John Dewey - Filosofia, Política e Educação - Parte I

por Marcus Vinicius da Cunha[1]

 

Resumo: Este trabalho apresenta a filosofia política de John Dewey expressa nos ensaios Liberalismo e Ação Social e Liberdade e Cultura, respectivamente de 1935 e 1939, com o intuito de compreender as concepções educacionais deweyanas contidas no livro Democracia e Educação de 1916. Por meio da análise dos conceitos liberais de individualismo e liberdade, Dewey critica o liberalismo de sua época – o laissez-faire – e apresenta as idéias que considera válidas para sustentar a democracia. Elaboradas em plena crise da sociedade americana, quando o New Deal era colocado em prática, são as proposições políticas de Dewey que dão suporte à sua pedagogia, cujos princípios são contrários ao cultivo da espontaneidade do aluno como finalidade central e exclusiva da educação escolar.

 

1 - Introdução

O presente trabalho integra um conjunto de pesquisas cuja meta consiste em compreender o pensamento educacional brasileiro nas décadas de 1930, 1940 e 1950. A fase atual da investigação busca discutir a assimilação das idéias de John Dewey pelos educadores escolanovistas, para o que tem sido desenvolvido o estudo de várias obras do filósofo estadunidense[2]. Este texto, em particular, apresenta alguns resultados da análise dos ensaios Liberalismo e Ação Social e Liberdade e Cultura, publicados respectivamente em 1935 e 1939,[3] os quais contêm extensa crítica ao panorama político da época, em especial às proposições liberais.

O objetivo, aqui, é demarcar a filosofia política de John Dewey e, com isso, situar suas propostas educacionais. Para tanto, serão consideradas as teses expressas em Democracia e Educação, obra de 1916 que traz aspectos essenciais da pedagogia deweyana. A análise pretende mostrar que Dewey distancia-se claramente de tendências pedagógicas favoráveis ao cultivo da espontaneidade do aluno como finalidade exclusiva da educação, o que se explica justamente pela noção deweyana de democracia.

Nos ensaios políticos acima mencionados, uma das afirmações centrais de Dewey (1970, p. 40) é que os primeiros liberais não tiveram “o senso e o interesse histórico” para perceber que suas interpretações dos conceitos fundamentais da democracia - liberdade, individualidade e inteligência - eram, na verdade, interpretações “historicamente condicionadas e relevantes apenas para seu próprio tempo” (Ibid, p. 41).

Para indicar os pontos falhos do liberalismo, Dewey analisa cada um desses conceitos, expondo ao mesmo tempo as concepções que adota. Nas páginas seguintes, será privilegiada a apresentação dos temas individualismo, liberdade e democracia, dada sua relevância para elucidar o ideário educacional do autor.

 

2 - A Era do New Deal

John Dewey escreveu os ensaios Liberalismo e Ação Social e Liberdade e Cultura em um momento crítico da história norte-americana.

Era a época do New Deal, política articulada desde 1933 pelo presidente Franklin Delano Roosevelt com o intuito de enfrentar o desemprego da classe trabalhadora e a falência das empresas, situação oriunda da crise econômica desencadeada pela quebra da bolsa em 1929. Compreender esse contexto contribui para situar o pensamento político de Dewey, o que não significa sugerir que o autor tenha elaborado suas idéias simplesmente em resposta aos inimigos do New Deal ou meramente para fundamentar em teoria uma política governamental. Dewey vai além do que seria necessário se os seus objetivos fossem tão limitados, como será possível verificar logo mais.

O desenvolvimento dos Estados Unidos na década de 1920 permitiu que o americano comum ficasse indiferente aos conflitos sociais, ao alastramento da corrupção e ao reacionarismo político e moral que tomaram conta do país, sendo que a crise dos anos de 1930, com o desmoronamento da imagem de nação auto-suficiente, há tempos cultivada, contribuiu para levar o povo americano à perda de sua autoconfiança. O principal alvo da política de Roosevelt era a “morganização”, palavra utilizada pelo historiador William Miller (1962) para traduzir a hegemonia das ideias de John Pierpont Morgan no cenário do desenvolvimento econômico norte-americano desde o início do século XX. Morgan e Rockfeller representavam a concentração dos negócios em mãos de uma minoria de empreendedores, em geral banqueiros e financistas, que promoviam a fusão de empresas, originando poderosos monopólios. Embora alguns estados americanos possuíssem leis antitrustes, o governo federal fracassava sistematicamente em conter o avanço monopolista, o qual trazia sensível aumento de produtividade nas fábricas, ao lado de notável indiferença pelo bem-estar social dos trabalhadores.

Em 1936, quando John Maynard Keynes publicou o livro Teoria Geral do Emprego, do Juro e da Moeda, considerado a bíblia do New Deal, esta política de recuperação do país já estava em andamento.

O New Deal consistiu em um amplo arranjo de medidas governamentais para apoiar organizações financeiras, comerciais e industriais em dificuldades, aliado a um conjunto de iniciativas visando a fomentar empregos e, conseqüentemente, melhorias na vida dos trabalhadores do campo e da cidade. As várias organizações sindicais daquele país conheceram então seu período áureo, o que foi um dos resultados mais significativos do New Deal. Este veio ao encontro do movimento progressista norteamericano, que denunciava os monopólios, combatia o emprego de crianças nas fábricas, pleiteava a regulamentação do trabalho das mulheres, reivindicava indenizações por acidentes de trabalho, além de melhoria nas condições de habitação e saúde dos operários, entre outros benefícios ostensivamente divergentes dos interesses capitalistas em vigor.

Durante o New Deal, o movimento sindical, que avançara significativamente nos governos do republicano Theodore Roosevelt, de 1901 a 1909, e do democrata Woodrow Wilson, de 1913 a 1921, passou a ser duramente combatido pelos empresários, que preferiam a doutrina de Morgan, segundo a qual os direitos e interesses dos trabalhadores eram melhor defendidos pelos patrões, a quem Deus confiara o controle da propriedade produtiva. A fundação do Partido Comunista americano, em 1919, acirrou o conflito entre morganistas e progressistas, disseminando o Grande Pânico Vermelho e a idéia fundamentalista do “pensamento 100% americano”. Durante os anos de 1920, a Ku Klux Klan avançou em sua perseguição a negros, judeus e católicos, e também em sua campanha contra os liberais em geral e o avanço da ciência, acusada de difundir o evolucionismo darwiniano.

Dewey escreveu na época do New Deal, que foi também a época de ascensão dos totalitarismos que marcaram o século XX, um tempo em que os defensores da liberdade armavam-se de argumentos para defender o “mundo livre” que viam ameaçado, pois naquele momento já se podia vislumbrar o início da divisão do mundo em dois grandes blocos.

Nesse quadro, a educação escolar passava a ser vista como um dos meios viáveis – excluída a possibilidade da guerra, é claro – para a manutenção da liberdade e para a obtenção da democracia.

 

3 - Contra o Velho Liberalismo

Nessa época, nos Estados Unidos, ser liberal significava emitir publicamente opiniões favoráveis às reivindicações progressistas e, no momento crítico, confirmar a política dos patrões contra os direitos dos trabalhadores. Nesse contexto, a intenção de Dewey é refletir sobre a possibilidade de uma pessoa continuar, “honesta e inteligentemente, a ser um liberal e, no caso afirmativo, que espécie de fé liberal poderia hoje ser defendida” (DEWEY, 1970, p. 16). Para responder a essa indagação, Dewey analisa os fundamentos do liberalismo, conforme foram historicamente firmados, a começar pelo individualismo, um dos princípios básicos do pensamento liberal, como se sabe.

Considerando a origem do liberalismo, com Locke, no século XVII, Dewey afirma que ser individualista era admitir que o indivíduo possui certos direitos naturais, contra os quais nenhuma autoridade secular ou espiritual podia erguer-se. Tal afirmação traduziu-se na assertiva de que a liberdade individual, garantida por leis naturais, contraria a idéia de governo – qualquer iniciativa de ação social organizada em benefício dos mais pobres ou menos poderosos. Ação social tornou-se sinônimo de práticas invasoras do espaço da individualidade. A intenção de Locke era preservar a liberdade de pensamento e ação, o direito de o indivíduo administrar sua vida à distância das coerções religiosas e políticas de sua época. Suas idéias foram desenvolvidas quando a burguesia lutava para chegar ao poder, momento em que ser revolucionário era perseverar contra o pensamento medieval que aprisionava o homem nas cadeias da dominação religiosa.

No século XIX, particularmente por influência das idéias de Adam Smith, elaboradas no século anterior, as noções de liberdade e individualidade adquiriram significados muito diferentes, ficando a atividade política subordinada à economia: as leis naturais que sustentam a idéia de liberdade individual passaram a ser entendidas como sujeitas às leis da produção e troca de mercadorias. Desse modo, Adam Smith tornou-se o sustentáculo da doutrina do laissez-faire, segundo a qual “a atividade dos indivíduos, libertos tanto quanto possível de restrições políticas, é a principal fonte do bem-estar social e a fonte última do progresso social”, como assinala Dewey (p. 20). Os defensores do laissez-faire apregoaram a existência de algo como uma “mão invisível” que ordena o mundo e permite que o indivíduo consiga satisfazer suas necessidades e as da coletividade por intermédio de seu esforço pessoal, sem que haja qualquer planejamento ou propósito previamente definido pelas instâncias governamentais.

Assim, toda iniciativa política inclinada a constituir agências de atuação em benefício dos trabalhadores começou a ser execrada, não apenas como “uma invasão da área de liberdade individual mas, na realidade, uma conspiração contra as causas que originavam o progresso social”, continua Dewey (1970, p.21) em sua crítica. As leis naturais de Locke perderam seu significado moral para tornar-se identificadas com as leis do capitalismo e com os interesses de uma classe social privilegiada. Uma vez liberto da “invasão” do poder público, o indivíduo que nada possui, além de seu próprio corpo, fica à mercê das leis de um modo de produção e circulação de mercadorias cujo único propósito é a concentração da riqueza em mãos de poucos, uma elite à qual os trabalhadores não pertencem.

Na Inglaterra, ainda no século XIX, foram aprovadas leis de proteção ao trabalho feminino e infantil, redução das horas de trabalho nas fábricas e outros direitos trabalhistas, o que levou os liberais a posicionar-se contrariamente ao laissez-faire e em defesa de ações governamentais como recurso de equilibração social. A partir de então, o liberalismo como idéia aplicada à realidade concreta ficou dividido internamente em duas correntes de pensamento, numa ambigüidade que explica sua impotência e o descrédito que angariou junto à população. A primeira forma de liberalismo, apegada à velha idéia de liberdade como direito natural, agrupa aqueles que relutam em aprovar medidas de ação governamental que sinalizem qualquer tipo de política social. Dewey consider aos como fornecedores de justificativas intelectuais para o “regime econômico existente, que de modo estranho, dir-se-ia ironicamente, sustentam como o regime da liberdade individual para todos”. A segunda forma de liberalismo, à qual Dewey (1970, p.36) integra-se, compromete-se “com o princípio de que a sociedade organizada deve usar os seus poderes para estabelecer as condições sob as quais a massa dos indivíduos tenha real – em oposição à meramente legal – liberdade”.

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Notas

1 - Professor-Adjunto (Livre-Docente) do Departamento de Psicologia da Educação e do Programa de Pós-Graduação em Educação Escolar da FCL/Unesp-Araraquara (SP).
2 - Pesquisa apoiada pelo CNPq.
3 - No Brasil, ambos foram publicados conjuntamente em 1970 no livro Liberalismo, Liberdade e Cultura, o qual será referenciado, daqui por diante, sem distinção dos ensaios que o compõem.
4 - Dewey exemplifica esta idéia por meio de Platão, cuja teoria sobre a ordem social ideal é baseada na observação de uma sociedade dividida em distintos grupos sociais, cada qual com uma função específica.
5 - Dewey ilustra esta idéia analisando as teses de Hobbes, para quem a competição é a causa de todos os infortúnios, e comparando-as às concepções liberais que afirmam ser a competição a causa geradora das riquezas.
6 - É por essas razões que Dewey se indispôs com o movimento pedagógico norte-americano chamado Educação Progressiva, ao qual recusou filiar-se (Kandel, 1959). Sobre essa divergência, ver o livro Experiência e Educação (Dewey, 1971).

Referências

DEWEY, J. Democracia e educação: introdução à filosofia da educação. 3. ed. Tradução Godofredo Rangel e Anísio Teixeira. São Paulo: Nacional, 1959a.
DEWEY, J. Reconstrução em filosofia. 2 ed. Tradução António Pinto de Carvalho. São Paulo: Nacional, 1959b.
DEWEY, J. Liberalismo, liberdade e cultura. Tradução Anísio Teixeira. São Paulo: Nacional, EDUSP, 1970.
DEWEY, J. Experiência e educação. Tradução Anísio Teixeira. São Paulo: Nacional, 1971.
KANDEL, I. L. Fim de uma controvérsia. Tradução Maria Helena Rapp. Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos, Rio de Janeiro, v.31, n. 74, p. 25-32, abr./jun. 1959.
MILLER, W. Nova história dos Estados Unidos. Tradução Thomaz Newlands Neto. Belo Horizonte: Itatiaia, 1962.

Palavras-chave:

John Dewey, política, Liberalismo, Escola Nova

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