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Explicando os Mitos

Resenha do Livro "O Mundo de Sofia" - Por Ana Lucia Santana >

Livro: O Mundo de Sofia (Romance da história da filosofia)
Cia das Letras - 25ª reimpressão
Autor: Jostein Gaarder Tradução: João Azenha Jr. Capítulo: Terceiro

... um equilíbrio precário entre as forças do bem e do mal...
Na manhã seguinte, não havia nenhuma carta na caixa de correio. Sofia achou chatíssimo o longo dia de aula, que parecia não ter fim. Nos intervalos, ela se esforçou para ser particularmente simpática com Jorunn. No caminho de volta para casa, as duas vieram fazendo planos de ir acampar assim que a floresta estivesse suficientemente seca.
Chegando em casa, parou novamente diante da caixa de correio. Primeiro, abriu um pequeno envelope que havia sido postado no México e que trazia uma carta de seu pai. Ele dizia que estava com saudade de casa e que pela primeira vez tinha ganhado uma partida de xadrez do Primeiro Timoneiro. No mais, ele já tinha lido quase todos os vinte quilos de livros que havia levado consigo depois das férias de inverno.
E mais ali. .. mais ali havia um envelope amarelo endereçado a ela, Sofia! Sofia deixou em casa a mochila e a correspondência e correu para seu esconderijo. Tirou do envelope outras páginas datilografadas e começou a ler.

A VISÃO MITOLÓGICA DO MUNDO

Olá, Sofia! Temos muita coisa pela frente, por isso é bom começarmos logo.
Por filosofia entendemos uma forma completamente nova de pensar, surgida na Grécia por volta de 6OO a.c. Antes disso, todas as perguntas dos homens haviam sido respondidas pelas diferentes religiões. Essas explicações religiosas tinham sido passadas de geração para geração através dos mitos.
Um mito e a história de deuses tem por objetivo explicar por que a vida é assim como é...
Ao longo dos milênios, espalhou-se por todo o mundo uma diversificada gama de explicações mitológicas para as questões filosóficas. Os filósofos gregos tentaram provar que tais explicações não eram confiáveis.
A fim de entendermos o pensamento dos primeiros filósofos, precisamos entender primeiro o que significa ter uma visão mitológica do mundo. Vamos tomar por exemplo algumas concepções mitológicas aqui mesmo do Norte da Europa. Não há necessidade de irmos muito longe para mostrar o que queremos.
Na certa você já ouviu falar de Thor e de seu martelo. Antes de o cristianismo chegar a Noruega, acreditava-se aqui no Norte que thor cruzava os céus numa carruagem puxada por dois bodes. E quando ele agitava seu martelo, produziam-se raios e trovões. A palavra "trovão" - Thor-den em norueguês - significa originariamente "o rugido de Thor". Em sueco, a palavra para trovão é aska, na verdade as-aka - que significa a jornada dos deuses no céu.
Quando troveja e relampeja, geralmente também chove. E a chuva era vital para os camponeses da era dos vikings. Assim, Thor era adorado como o deus da fertilidade.
A resposta mitológica a questão de saber por que chovia era, portanto, a de que thor agitava seu martelo e, quando caía a chuva, as sementes germinavam e as plantas cresciam nos campos.
Não se entendia por que as plantas cresciam nos campos e como davam frutos. Mas os camponeses sabiam que isto tinha alguma coisa a ver com a chuva. Alem disso, todos acreditavam que a chuva tinha algo a ver com thor. E isto fazia dele um dos deuses mais importantes do Norte da Europa.
Mas thor era importante ainda par outro motivo, que tinha a ver com toda a ordem do mundo.
Os vikings imaginavam o mundo habitado como uma ilha, constantemente ameaçada por perigos externos. Esta parte habitada do mundo eles chamavam de Midgard, que significa o reino que é no meio. Em Midgard também havia Asgard, a morada dos deuses. Fora de Midgard havia Utgard, isto é, o reino de fora, habitado pelos perigosos trolls, que não se cansavam de tentar destruir o mundo com toda a sorte de golpes baixos. Chamamos estes monstros malignos também de "forças do caos". Na religião nórdica e também na maioria das outras culturas, as pessoas acreditavam que havia um equilíbrio precário entre as forças do bem e do mal.
Uma possibilidade que os trolls tinham de destruir Midgard era roubar Freyja, a deusa da fertilidade. Se conseguissem isto, nada mais cresceria nos campos e as mulheres não teriam mais filhos. Por isso era tão importante que os bons deuses mantivessem os trolls afastados...
E também nesse caso thor era importante: seu martelo não trazia apenas chuva, mas era também uma arma na luta contra as perigosas forças do caos. O martelo emprestava a thor um poder quase infinito. Ele podia, por exemplo, atira-lo nos trolls e mata-los. E também não precisava ter medo de perde-lo, pois o martelo era como um bumerangue e voltava para seu dono.
Esta era a explicação mitológica para o funcionamento da natureza e para o fato de existir sempre uma luta entre o bem e o mal.

Mas não se tratava apenas de explicações.

As pessoas não podiam simplesmente ficar sentadas de braços cruzados, esperando pela intervenção dos deuses, quando catástrofes tais como secas e epidemias as ameaçavam. As pessoas precisavam elas mesmas participar dessa luta contra o mal. E isto elas faziam através de toda a sorte de cerimônias ou rituais religiosos.
O principal ritual religioso na Antiguidade nórdica era o sacrifício. Oferecer alguma coisa em sacrifício a um deus significava aumentar o seu poder. As pessoas precisavam, por exemplo, oferecer sacrifícios aos deuses, a fim de que eles se fortalecessem o suficiente para vencer as forças do mal. Isto podia ser feito, por exemplo, sacrificando-se um animal. Presume-se que a thor eram sacrificados sobretudo bodes. Para Odin sacrificavam-se às vezes também pessoas.
O mito mais conhecido na Noruega e narrado no poema Trymskveda. Ele nos conta que thor adormeceu e que, quando acordou, seu martelo tinha desaparecido. Thor ficou tão furioso que suas mãos tremeram e sua barba estremeceu. Acompanhado de seu homem de confiança, Loki, thor foi ate Freyja para lhe pedir emprestadas suas asas, a fim de que Loki pudesse voar ate Jotunheim e descobrir se os trolls tinham roubado o martelo de thor. Lá chegando, Loki encontrou Trym, o rei dos trolls, que logo foi se gabando por ter enterrado o martelo cinco quilômetros debaixo da terra. E, para completar, Trym disse que os deuses só teriam o martelo de volta se Freyja se casasse com ele.
Você esta acompanhando, Sofia? Subitamente, os deuses do bem estão diante de um drama jamais visto: um drama envolvendo um refém. Os trolls tem agora em seu poder a mais importante arma de defesa dos deuses, e esta situação é absolutamente inaceitável. Enquanto os trolls estiverem com o martelo de thor, seu poder sobre os mundos dos deuses e dos homens será irrestrito. Para devolver o martelo eles exigem Freyja. Mas esta troca não é possível. Se os deuses entregarem a deusa da fertilidade, que protege todas as formas de vida, então o verde desaparecerá dos pastos, e deuses e homens acabarão morrendo. Não há, portanto, como avançar ou como retroceder nesta situação. Para você entender a que estou dizendo, imagine um grupo terrorista que ameaça explodir uma bomba atômica no centro de Londres ou de Paris, caso suas perigosas exigências não sejam cumpridas.
Continuando, o mito nos diz que Loki volta para Asgard e pede a Freyja que se enfeite de noiva, pais ela terá de se casar com o troll (infelizmente, infelizmente!). Freyja fica furiosa e diz que, se ela se casar com um troll, as pessoas vão pensar que ela é louca por homens.
E então o deus Heimdal tem uma boa ideia. Ele sugere que thor se fantasie de noiva. Prendendo os cabelos e amarrando duas pedras no lugar dos seios, ele ficaria parecido com uma mulher. É claro que thor não fica muito entusiasmado com esta ideia, mas acaba reconhecendo que só assim os deuses teriam uma chance de reaver o martelo. No fim, thor é fantasiado de noiva e Loki o acompanha como dama de honra. - E assim levamos não apenas uma, mas duas mulheres para os trolls - diz Loki em tom de brincadeira.
Se quisermos formular a coisa de uma forma mais moderna, podemos chamar thor e Loki de um "comando antiterror" dos deuses. Fantasiados de mulher, eles pretendem se infiltrar na fortaleza dos trolls e reaver o martelo de thor.
Logo que eles chegam a Jotunheim, as trolls iniciam todos os preparativos para as bodas. Na festa, porém, a noiva - isto é, thor - come um boi inteiro, oito salmões e bebe três barris de cerveja. Trym fica admirado com a que vê. Por um triz o disfarce do comando antiterror não é descoberto. Mas Loki consegue salva-los desse perigo. Ele conta que Freyja não comia havia oito dias, tão ansiosa ela estava para chegar a Jotunheim.
Quando Trym ergue o véu da noiva para beija-Ia, ele recua ao se deparar com a olhar severo de thor. Mas também desta vez Loki consegue contornar a situação. Ele conta que a noiva havia sete noites não conseguia dormir de alegria com a casamento. Então Trym ordena que tragam a martelo e que ele seja colocado no colo da noiva durante a cerimônia de casamento.
Conta a mito que quando thor viu a martelo no seu colo, ele deu uma boa risada. Primeiro matou Trym e depois todos as outros trolls de Jotunheim. E, assim, o terrível drama envolvendo um refém teve um final feliz. Mais uma vez, thor - a Batman ou a James Bond dos deuses - tinha vencido as forças do mal.
Bem, acho que podemos parar par aqui com a história do mito, Sofia. Mas a que será que este mito em particular realmente quer nos dizer? É claro que ele não foi escrito em versos apenas para divertir. Também este mito quer explicar alguma coisa. E aqui vai uma interpretação possível:
Quando a seca assolava uma região, as pessoas precisavam de uma explicação para a total ausencia de chuva. Nao seria porque os trolls tinham roubado a martelo de Thor?
Podemos imaginar tambem que este mito tenta explicar a allternancia das estações do ano: no inverno a natureza está morta, porque a martelo de Thor está em Jotunheim. Mas na primavera Thor consegue reavê-lo. E, assim, os mitos tentam explicar às pessoas algo que elas não conseguem entender.
Mas as pessoas não se contentavam apenas com explicações como esta que acabamos de ouvir. Elas também tentavam participar desses acontecimentos tão importantes para suas vidas. E o faziam através de diferentes rituais religiosos, que guardavam uma relação com os mitos. Assim, podemos imaginar que no caso da seca, ou de uma colheita ruim, as pessoas encenassem um drama que recontasse a história do mito. Talvez um homem da aldeia se fantasiasse de noiva usando pedras no lugar dos seios, a fim de reaver a martelo que estava em poder dos trolls. Era esta a forma que as pessoas viam de fazer alguma coisa para atrair chuva e fazer as sementes germinarem nos campos.
Embora não saibamos exatamente como tudo acontecia, uma coisa é certa: há muitos exemplos de outras partes do mundo que nos mostram que as pessoas encenavam um "mito das estações do ano", afim de acelerar os processos naturais.
O que fizemos foi apenas um breve passeio pelo mundo dos mitos nórdicos. Ha inúmeros outros mitos sobre Thor e Odin, Freyeja, Hod e Balder; e sobre muitas, muitas outras divindades. Viisões míticas como estas existiam no mundo todo, muito antes de os filósofos começarem a questioná-las. Pois os gregos também tinham a sua visão mitológica do mundo, quando surgiram os primeiros filósofos. Ao longo dos séculos, as historias dos deuses foram sendo passadas de geração em geração. Na Grecia, os deuses eram chamados de Zeus e Apolo, Hera e Atena, Dioniso e Asclenio, Heracles e Hefafstos, apenas para citar alguns nomes.
****
Por volta de 7OO a.c., Homero e Hesíodo registraram por escrito boa parte do tesouro da mitologia grega. Isto levou a uma situação completamente nova. É que, a partir do momento em que mitos foram colocados no papel, já se podia discutir sobre eles.
Os primeiros filósofos gregos criticaram a mitologia descrita por Homero, porque para eles os deuses ali representados tinham muitas semelhanças com os homens. De fato, eles eram exatamente tão egoístas e traiçoeiros como qualquer um de nós. Pela primeira vez na história da humanidade foi dito claramente que os mitos talvez não passassem de frutos da imaginação do homem.
Um exemplo dessa crítica aos mitos pode ser encontrado no Filósofo Xenófanes, nascido por volta de 570 a.c. Para ele, as pessas teriam criado os deuses à sua propria imagem e semelhança: "Os mortais acreditam que os deuses nascem, falam e se vestem de forma semelhante à sua própria ... Os etíopes imaginam seus deuses pretos e de nariz achatado; os tracianos, ao contrário, os veem ruivos e de olhos azuis ... Se as vacas, cavalos ou leões tivessem mãos e com elas pudessem pintar e produzir obras como os homens, eles criariam e representariam suas divindades à sua imagem e semelhancça: os deuses dos cavalos teriam feições equinas, os das vacas se pareceriam com elas, e assim por diante"...
Nesta época, os gregos fundaram muitas cidades-Estados na Grécia e em suas colônias no Sul da Itália e na Ásia Menor. Nelas, os escravos faziam todo o serviço braçal e os cidadãos livres possam dedicar-se exclusivamente à política e à cultura. Sob tais condições de vida, o pensamento humano deu um salto: sem depender de nada nem de ninguém, cada indivíduo podia agora opinar sobre como a sociedade devia ser organizada. Desse modo, o indivíduo podia formular suas questões filosóficas sem ter que para isto recorrer à tradição dos mitos.
Dizemos que naquela época ocorreu a evolução de uma forrma de pensar atrelada ao mito para um pensamento construído sobre a experiência e a razão. O objetivo dos primeiros filósofos gregos era o de encontrar explicações naturais para os processos da natureza...
Sofia resolveu andar um pouco pelo jardim. Ela tentava esquecer tudo o que tinha aprendido na escola, principalmente o que tinha lido nos livros de ciência.
Se ela tivesse crescido naquele jardim, sem saber qualquer coisa a respeito da natureza, o que seria a primavera para ela?
Será que ela inventaria uma explicação para o fato de um belo dia de repente começar a chover? Será que ela daria asas à imaginação para explicar por que a neve derrete e o sol se levanta no céu?
Sim, ela estava certa de que o faria. E imediatamente começou a inventar uma história:
o inverno agarrou a terra com suas mãos geladas, porque o malvado Muriat mantinha a bela princesa Sikita presa num frio calabouço. Certa manhã, porém, o valente príncipe Bravato veio e conseguiu libertá-la. Sikita ficou tão feliz que começou a dançar sobre os campos e prados, cantando uma canção que ela tinha composto durante seu cativeiro no frio calabouço. E a terra e as árvores ficaram tão enternecidas que toda a neve se desfez em lágrimas. Foi então que o Sol apareceu no céu e secou todas as lágrimas. Os passarinhos passaram a imitar a canção de Sikita, e, quando a bela princesa soltou seus cabelos loiros, algumas mechas douradas caíram no chão e se transformaram em lírios ...
Sofia achou que tinha inventado uma bela história. Se ela não conhecesse nenhuma outra explicação para a alternância das estações do ano, certamente teria acreditado na sua história.
Ela entendeu, então, que as pessoas sempre tiveram a necessidade de explicar os processos da natureza. Que elas talvez nem pudessem viver sem tais explicações: E por causa disso inventaram os mitos, pois naquela época ainda não existia a ciência.
 

Livro: O Mundo de Sofia (Romance da história da filosofia)
Cia das Letras - 25ª reimpressão
Autor: Jostein Gaarder Tradução: João Azenha Jr. Capítulo: Terceiro