Vidas e Doutrinas dos Filósofos Ilustres, de Diógenes Laércio
(séc. III d.C.)
Extraído e adaptado de: LAÉRCIO, Diógenes. Vidas dos Filósofos Ilustres.
Livro VI (Escola cínica), 20-81 (Diógenes).
Diógenes (c. 412-323 a.C.), filho do banqueiro Hicésio, nasceu em Sínope. Dioclés revela que ele viveu no exílio porque seu pai, a quem fora confiado o dinheiro do Estado, falsificou a moeda corrente. Entretanto, Eubúlides, em seu livro sobre Diógenes, afirma que foi o próprio Diógenes quem
agiu assim e foi forçado a deixar a terra natal com seu pai. Diógenes, aliás, em sua obra Pôrdalos, confessa a falsificação da moeda. Dizem alguns autores que, tendo sido nomeado superintendente, deixou-se persuadir pelos operários, indo a Delfos ou ao oráculo Délio, na pátria de Apolo, perguntar se deveria fazer aquilo a que desejavam induzi-lo. O deus lhe deu permissão para “alterar os valores correntes”, porém, ele não entendeu e adulterou a moeda. Descoberto, segundo alguns autores, foi exilado, e, segundo outros, deixou a cidade espontaneamente. Outros autores contam ainda que o pai lhe confiou a cunhagem da moeda e que ele a adulterou; o pai foi preso e morreu; o próprio Diógenes fugiu e foi a Delfos perguntar não se devia falsificar a moeda, e sim o que devia fazer para tornar-se mais famoso, e então recebeu o oráculo mencionado.
Chegando a Atenas, encontrou-se com Antístenes; recebido por este, que nunca recebia bem os discípulos, conseguiu convencê-lo graças à sua perseverança. Certa vez, quando Antístenes levantou o bastão contra Diógenes, este ofereceu a cabeça, dizendo: “Golpeie, pois não achará madeira tão dura que me faça desistir de conseguir que me diga alguma coisa, como me parece que é seu dever.” Desde essa ocasião, passou a ser seu ouvinte e, na qualidade de exilado, adotou um modo de vida modesto.
Teofrasto conta, em seu Megárico, que certa vez Diógenes, vendo um rato correr de um lado para outro, sem destino, sem procurar um lugar para dormir, sem medo das trevas e não querendo nada do que se considera
desejável, descobriu um meio de adaptar-se a todas as dificuldades. Segundo alguns autores, ele foi o primeiro a dobrar o manto, porque tinha de usá-lo também para dormir, e carregava uma sacola onde guardava
seu alimento; servia-se indiferentemente de qualquer lugar para satisfazer qualquer necessidade, para o desjejum e para dormir, ou para conversar. Sendo assim, costumava dizer, apontando para o Pórtico de Zeus e para a Sala de Procissões, que os próprios atenienses lhe haviam proporcionado lugares onde podia viver.
De início, apoiava-se no bastão somente quando estava enfermo, mas depois usava-o sempre, embora não na cidade, e sim quando caminhava pela estrada com ele e a sacola (assim dizem Olimpiodoro, que governou
os atenienses, o orador Poliêuctes e Lisânias, filho de Escríon). Em certa ocasião, Diógenes escreveu a alguém pedindo para arranjar-lhe uma pequena casa; em face da demora dessa pessoa, ele passou a morar
num tonel existente no Metrôon, de acordo com suas próprias afirmações em suas cartas. No verão, ele rolava sobre a areia quente, enquanto, no inverno, abraçava as estátuas cobertas de neve, querendo por todos os meios acostumar-se às dificuldades.
Diógenes comprazia-se em tratar seus contemporâneos com altivez. Chamava de amargosa (kholé) a escola (skholé) de Euclides, e dizia que as preleções de Platão eram perda de tempo, que as representações teatrais durante as Dionisíacas eram grandes maravilhas para os tolos, e que os demagogos
eram os serventes da multidão. Em sua vida, sempre que via pilotos, médicos e filósofos, costumava definir o homem como o mais inteligente dos animais; entretanto, quando via intérpretes de sonhos, adivinhos
e pessoas que prestavam atenção a indivíduos cheios de arrogância ou de riqueza, pensava que não havia animal mais estúpido. Diógenes dizia constantemente que na vida necessitamos apenas da razão, ou então de
uma corda para nos enforcarmos.
Certa vez, num banquete suntuoso, vendo Platão servir-se apenas de azeitonas, Diógenes comentou: “Como você, filósofo que navegou até a Sicília por causa de mesas como esta, agora que elas estão na sua frente, não as desfruta?” Platão respondeu: “Mas, pelos deuses, Diógenes, lá eu também comia azeitonas e coisas semelhantes”. Diógenes replicou: “Por que, então, ir até Siracusa? Será que, na época, a Ática não produzia azeitonas?” Em outra ocasião, Diógenes, quando comia figos secos, encontrou Platão e o convidou para prová-los. Platão os apanhou e comeu-os, e Diógenes exclamou: “Eu o convidei para experimentá-los, não para devorar todos!”
Durante uma recepção oferecida por Platão a amigos vindos da parte de Dionísio, Diógenes pisou em seus tapetes e disse: “Estou pisando na vanglória de Platão”. A resposta de Platão foi: “Quanto orgulho você demonstra, Diógenes, embora queira parecer imune a ele!” Outros dizem que Diógenes falou: “Piso no orgulho de Platão”, e que este replicou: “Com outro tipo de orgulho, Diógenes”. Em outra ocasião, Diógenes pediu-lhe vinho e ao mesmo tempo figos secos. Platão mandou-lhe uma ânfora cheia de vinho, e o outro disse: “Se alguém lhe perguntar quanto são dois mais dois, você responde vinte? Pois parece que você não dá a quantidade que lhe pedem, nem a resposta ao que foi perguntado”. Diógenes também
censurava Platão por ser excessivamente falante.
Certa vez em que alguém prestava atenção a um discurso sério seu, ele começou a assobiar; vendo o povo aglomerar-se em sua volta, ele censurou a multidão por ter se aproximado atentamente para ouvir uma tolice,
enquanto, para ouvir coisas sérias, ninguém havia chegado perto. Diógenes dizia que os homens competem para cavar fossos e para se esmurrar, mas ninguém compete para tornar-se moralmente excelente. Admirava-se vendo os críticos literários estudarem os males de Ulisses, apesar de ignorarem seus próprios males; ou os músicos afinarem as cordas da lira, sem cuidarem de obter a harmonia de sua alma; ou os matemáticos investigarem o Sol e a Lua, mas ignorarem a realidade sob seus próprios olhos; ou os oradores cansarem-se de falar em justiça, mas não a praticarem; ou os avarentos esbravejarem contra o dinheiro, enquanto na realidade o amam exageradamente.
Diógenes condenava as pessoas que, apesar de louvarem os justos por estarem acima das riquezas, invejavam os homens muito ricos. Revoltavam-no os sacrifícios aos deuses pela saúde, porque, durante os próprios sacrifícios, as pessoas se banqueteavam em detrimento da saúde; e se admirava quando os escravos, embora vendo seus senhores comendo desbragadamente, nada subtraíam das iguarias.
Diógenes elogiava os que estavam na iminência de casar, mas não casavam; os que estavam a ponto de viajar, mas não viajavam; os que pensavam em se dedicar à política, mas não se dedicavam; os que desejavam constituir uma família e não a constituíam; os que se preparavam para conviver com os poderosos, mas não se aproximavam deles. Dizia também que se deve estender a mão aos amigos com os dedos abertos, e não fechados.
Em sua obra Diógenes à Venda, Mênipo afirma que, quando Diógenes foi capturado e posto à venda, perguntaram-lhe o que sabia fazer; “Comandar os homens”, disse ele, e deu ordens ao leiloeiro para chamá-lo no caso de alguém querer comprar um senhor. Proibido de sentar-se, Diógenes disse: “Não importa, pois os peixes, em qualquer posição que estejam, ainda encontrarão compradores”.
Ele se admirava de que, antes de comprar um jarro ou um prato, façamo-lo tinir, mas, quando se trata de um homem [um escravo], contentamo-nos simplesmente com olhá-lo. Diógenes intimava Xeníades, seu comprador, a obedecê-lo, embora fosse seu escravo, pois, se um médico ou piloto se encontrasse na condição de escravo, seria igualmente necessário prestar-lhe obediência. Em sua obra intitulada Diógenes à Venda, Êubulo afirma que Diógenes educou os filhos de Xeníades de tal maneira que, depois de outras disciplinas, ensinou-lhes a cavalgar, a atirar com o arco, a lançar pedras e a arremessar dardos. Mais tarde, na escola de luta, não permitiu ao mestre dar-lhes uma educação atlética completa, mas apenas exercitá-los até adquirirem a cor avermelhada e as condições normais de saúde. Os meninos sabiam de cor muitos trechos de poetas e prosadores, além de obras do próprio Diógenes, e ele os treinava todo o tempo para terem boa memória. Em casa, ensinava-os a cuidar de si mesmos, a nutrir-se com alimentos simples e a beber apenas água. Cortava-lhes os cabelos bem curtos, privando-os de quaisquer ornamentos, educando-os
para andarem sem túnica, descalços, silenciosos, e para cuidarem somente de si mesmos nas ruas; além disso, levava-os algumas vezes para caçar.
Os meninos, por sua vez, tinham grande consideração por Diógenes e intercediam por ele junto a seus pais. O mesmo Êubulo atesta que Diógenes envelheceu junto a Xeníades e, quando morreu, foi sepultado por seus filhos.
Certa vez, quando Xeníades lhe perguntou como queria ser enterrado, Diógenes lhe respondeu: “Com o rosto para baixo”. “Por quê?”, perguntou Xeníades. Diógenes respondeu: “Porque, em breve, o que está em baixo passará a estar em cima”. Provavelmente, essa era uma referência ao fato de que os macedônios havia ascendido recentemente de uma posição humilde para a supremacia política. Tendo sido levado a uma casa rica
e magnífica, alguém o proibiu de cuspir; diante disso, ele pigarreou profundamente e cuspiu no rosto da pessoa, pois não encontrava, disse ele, um lugar mais sujo para isso. Conta Hécaton, no primeiro livro
de suas Sentenças, que certa vez Diógenes gritou: “Atenção, homens!”, e, quando muita gente acorreu à sua volta, ele os golpeou com seu bastão dizendo: “Chamei homens, não canalhas!”. Conta-se que Alexandre, o Grande, disse que, se não tivesse nascido Alexandre, gostaria de ter nascido Diógenes.
Diógenes sustentava que a palavra “inválido” (anapérous) devia aplicar-se não aos sem visão ou sem audição, mas aos sem sacola (péra). Conta Métrocles, em suas Sentenças, que certa vez, entrando numa festa de jovens com metade da cabeça raspada, Diógenes foi recebido a pancadas. Depois, ele escreveu numa tabuleta os nomes daqueles que o tinham espancado e passeou com a tabuleta pendurada no pescoço, reagindo assim à ofensa recebida, até haver coberto seus autores de ridículo e levá-los à execração e descrédito públicos. Diógenes descrevia-se como um cão daqueles que são elogiados por todos, mas ninguém que o elogiava, acrescentava ele, ousava levá-lo para caçar. A alguém que se vangloriava de ter vencido
os homens nos Jogos Píticos, Diógenes replicou: “Você vence escravos, eu venço homens livres”.
A alguém que lhe disse: “Está velho, vá repousar!”, Diógenes respondeu: “Como? Se eu estivesse correndo num estádio, deveria diminuir o ritmo ao me aproximar da chegada? Ao contrário, deveria aumentar a velocidade”. Certa vez, ele recusou um convite para jantar porque, na ocasião anterior,
o anfitrião não lhe havia agradecido. Diógenes caminhava sobre a neve de pés descalços e fazia as outras coisas mencionadas acima. Tentou até comer carne crua, porém, não conseguiu digeri-la. Em outra ocasião,
encontrou Demóstenes, o orador, almoçando numa taverna e, quando ele se retirou, Diógenes disse: “Agora, vai estar ainda mais na taverna”. Quando alguns estrangeiros expressaram o desejo de ver Demóstenes, ele
apontou com dedo médio em riste em sua direção e disse: “Lá vai o demagogo de Atenas”.
Querendo dar uma lição a alguém que se envergonhava de apanhar um pedaço de pão que lhe caíra da mão, Diógenes amarrou uma corda no gargalo de uma jarra de vinho e saiu arrastando-a através do Cerâmico [2]. Diógenes dizia que imitava o exemplo dos instrutores dos coros; de fato, estes dão o tom mais alto para que todos os outros alcancem o tom conveniente. A maioria das pessoas, comentava ele, está de tal maneira próxima da insanidade mental que um dedo faz toda diferença: “Se você andar com
o dedo médio estendido, pensarão que é louco; mas, se for com o dedo mínimo, não pensarão assim”. Coisas muito valiosas, afirmava Diógenes, são vendidas a preço ínfimo, e vice-versa; por isso, vende-se uma estátua por 3.000 dracmas, mas um quarto de farinha por apenas 2 moedas de cobre.
A Xeníades, que o comprara como escravo, Diógenes disse: “Vem cá cumprir as minhas ordens!”. Xeníades respondeu com o verso: “Os rios remontam às nascentes [3]”. Diógenes, então, replicou: “Se você estivesse doente e tivesse comprado um médico, em vez de obedecê-lo, recitaria: ‘Os rios remontam às nascentes?’”. A alguém que desejava estudar filosofia com ele, Diógenes deu um atum e ordenou à pessoa que o seguisse com o peixe na mão. Essa pessoa envergonhou-se de levá-lo, jogou-o fora e foi embora. Algum tempo depois, o filósofo a encontrou e disse-lhe, rindo: “Um atum desfez nossa amizade”.
Certa vez, Diógenes viu um menino bebendo água com as mãos; então, jogou fora o copo que tirara da sacola, dizendo: “Um menino me deu uma lição de simplicidade!”. Ele jogou fora também sua bacia, ao ver um
menino que quebrara o prato comer lentilhas com a parte côncava de um pedaço de pão. Diógenes raciocinava da seguinte maneira:
“Tudo pertence aos deuses.
Os sábios são amigos dos deuses.
Os bens dos amigos são comuns.
Logo, tudo pertence aos sábios.”
[1] Diógenes Laércio (c. 200- c. 250 d.C.) foi biógrafo antigo de vários
gregos ilustres, inclusive do filósofo aqui tratado, Diógenes de Sínope
(c. 412-323 a.C.).
[2] Bairro dos oleiros em Atenas.
[3] Medéia, de Eurípedes, v. 410.
Palavras chave: "Diógenes de Sínope, Diógenes o Cínico, características de Diógenes, cinismo, sociedade grega, dialética do esclarecimento, indústria cultural, Educação"