John Dewey - Filosofia, Política e Educação - Parte II

por Marcus Vinicius da Cunha[1]

 

4 - Contra a Liberdade Liberal

Dewey posiciona-se contra o velho liberalismo e a favor de políticas que incluam iniciativas governamentais reguladoras, a exemplo do que se encontrava em andamento sob o New Deal. Dewey considera que os velhos liberais não levaram em conta a necessidade dessas iniciativas por não perceberem que o problema da democracia não se resolve apenas por intermédio do sufrágio universal e do governo representativo. A democracia é muito mais do que um regime garantido por certos procedimentos formais, como se fosse um jogo que se ganha apenas por seguir as regras: “O problema da democracia faz-se o problema de uma forma de organização social, estendida a todas as áreas e modos de vida, em que as potencialidades dos indivíduos não somente estejam livres de constrangimento mecânico externo mas sejam estimuladas, sustentadas e dirigidas” (Ibid, p. 39).

Segundo Dewey, o liberalismo originalmente concebeu o conceito de liberdade como liberdade política e econômica. No terreno das instituições legais e das condições de participação do povo nos processos decisórios, os liberais tomaram medidas que tendem a garantir a livre e igualitária participação de todos, por exemplo, na escolha dos governados pelos governantes. Além disso, as normas constitucionais que se desenvolveram com os Estados modernos previram, como até hoje prevêem, uma série de mecanismos que propiciam controle sobre possíveis desmandos dos ocupantes de cargos públicos. Mas liberdade não é um conceito formal, à parte da história, pois sempre diz respeito “a alguma classe ou grupo que está a sofrer (...) alguma forma de constrangimento resultante da distribuição de forças na sociedade contemporânea”.

Neste momento histórico, diz Dewey, liberdade “significa libertar-se da insegurança material e das coerções e repressões que vedam as multidões de participar dos vastos recursos materiais disponíveis” (DEWEY, 1970, p. 54). A idéia de liberdade, assim, integra-se à luta por um mundo melhor, mais justo e menos desigual, referindo-se assim não só a direitos legalmente constituídos, mas também, e principalmente, à distribuição de bens materiais.

No terreno da economia, os liberais não foram capazes de estabelecer algo semelhante ao que fizeram no campo das instituições políticas, esquecendo-se de fomentar meios de controle social das forças econômicas.

Os economistas liberais restringiram o conceito de liberdade à liberdade econômica, acreditando que a livre competição e o natural impulso para o ganho pessoal trariam uma era de abundância que automaticamente suplantaria as diferenças sociais. A história mostrou, porém, que variados artifícios podem ser acionados para promover a concentração de capital, o que facilita, por exemplo, a criação de escassez artificial de bens em proveito de poucos, o que, por sua vez, impede a livre expansão da iniciativa individual.

Dewey critica os liberais por não terem previsto que a falta de controle sobre a propriedade privada dos meios de produção e distribuição de mercadorias iria acarretar a desigual apropriação privada das riquezas materiais e culturais, e não a sua socialização. “Uma era de poder na posse de poucos tomou o lugar da era de liberdade para todos prevista pelos liberais do começo do século dezenove”, afirma Dewey ( 1970, p.43). Quando o laissez-faire revelou-se produtor de disparidades, ao invés de promover a almejada igualdade, foi como se aquela “mão invisível” ficasse estendida mais para uns do que para outros. Entrou em cena, então, a justificativa de que tudo se deve à desigualdade “natural” entre os indivíduos e que, no livre jogo das diferenças entre as pessoas em busca do sucesso, alguns têm mais recursos que outros – recursos provindos da natureza de cada um.

Por esta via, não há mesmo nada que o poder público possa fazer, pois qualquer atitude para remediar a situação daqueles que são menos dotados intelectualmente torna-se, no mínimo, um desperdício de esforços.

Mesmo que tal justificativa fosse aceitável, o que verdadeiramente não é, Dewey entende que ela deveria ser utilizada não para desmontar o esforço social organizado em benefício dos mais pobres, mas sim para agilizar ações sociais de proteção àqueles que correm o risco de ser massacrados pelo poder econômico. Ao recusar-se a atualizar seus conceitos na medida em que a história assim o exige, o liberalismo transformou-se numa doutrina incapaz de realizar um de seus princípios fundamentais, a liberdade, tornando-a então um conceito meramente formal.

A liberdade, que Dewey considera um dos “valores duradouros do liberalismo”, é uma idéia que transcende o próprio liberalismo, constituindo uma conquista do pensamento humano. Mas precisa ser vista mediante a situação atual e não como um direito inerente à natureza humana.

5 - Contra o Individualismo Liberal

Outro dos “valores duradouros do liberalismo”, que Dewey considera deturpados pelos novos liberais, é o individualismo, a idéia de que cada indivíduo deve ter condições para desenvolver ao máximo suas capacidades. Como no caso da liberdade, o liberalismo também reduziu essa concepção a seu aspecto puramente formal, “como qualquer coisa feita, que já se possuísse e que apenas precisasse, para entrar plenamente em ação, da remoção de certas restrições legais” (Dewey, 1970, p.46). Os liberais não compreenderam que o indivíduo vive em real dependência das condições sociais e que estas não são coisas externas ao indivíduo, mas coisas que dizem respeito à sua constituição interna, à possibilidade de promoção de seu crescimento efetivo.

Dewey acusa os liberais do século XIX de recuperarem a noção de natureza humana para explicar as diferenças sociais, uma noção que traduz a crença de que supostas leis psicológicas governam os seres humanos, leis imutáveis, independentes do momento histórico e das circunstâncias sociais. Tais leis seriam aplicadas diferentemente a cada indivíduo, o que geraria as diferenças individuais, às quais o liberalismo atribui a responsabilidade pelo sucesso e pelo fracasso de cada um na sociedade. Para Dewey, (1970, p.48) entretanto, se é verdade que essas leis existem, elas são “leis dos indivíduos em associação” e não de indivíduos em uma suposta “condição mítica” apartada da ordem social.

Essas formulações deweyanas significam que, se existe uma natureza humana, ela é essencialmente social, constituída no mundo em que o indivíduo vive, mundo este que é formado pela herança cultural das gerações passadas, pelos elementos físicos e espirituais do presente e pelas relações que os homens estabelecem entre si, bem como pela experiência de cada indivíduo neste mesmo mundo. Como tudo isso muda de tempos em tempos, a natureza humana deve ser entendida como algo constantemente mutável, jamais passível de ser definida aprioristicamente.

Mas não era assim que pensavam os liberais defensores do laissezfaire, para quem todos os fenômenos sociais devem ser compreendidos com base “nas operações mentais dos indivíduos, uma vez que a sociedade consiste, em última análise, apenas de pessoas individuais” (DEWEY, 1970, p.194). Assim, a sociedade não seria mais do que a soma de indivíduos isolados, e as motivações desses indivíduos isolados seriam suficientes para explicar os fatos sociais e dar sustentação para a política. Para a política que prega a omissão do Estado, evidentemente, pois se tudo o que há na sociedade decorre de fenômenos psicológicos, e se estes são vistos como tópicos da imutável natureza humana, por que motivo iriam os governos interferir? Bastaria deixar que as leis naturais atuassem espontaneamente.

Em sua crítica, Dewey (1970) enfatiza que essa concepção, “como uma teoria da natureza humana é, essencialmente, psicológica”, embora seja apresentada por seus divulgadores como estritamente econômica. Sua expressão clássica, segundo Dewey, é feita por John Stuart Mill, utilitarista inglês do século XIX, cujas idéias sintetizam concepções de homens que foram, a seu tempo, revolucionários. Tais homens

“Desejavam libertar certo grupo de indivíduos, aqueles interessados em novas formas de indústria, comércio e finança, de grilhões herdados do feudalismo e que eram pelo costume e interesse privilégios de uma poderosa aristocracia da terra. Se hoje não parecem revolucionários (...) é porque seus modos de ver são hoje a filosofia dos conservadores em cada país altamente industrializado” (DEWEY, 1970, p.195).

O que Dewey quer dizer é que, na época em que se lutava contra os privilégios feudais, ou contra os seus resquícios, afirmar a existência de uma natureza humana significava postular que a política era assunto de todos e não de uma classe “supostamente destinada por Deus ou pela Natureza para exercer o governo” (DEWEY, p.192). O destaque dado por Dewey é na palavra “humana”, em contraposição a “Natureza” simplesmente, ou seja, o destaque é para a afirmação democrática de que todos temos os mesmos direitos por sermos todos seres humanos. Por compartilharmos todos da mesma “natureza”, torna-se inadmissível a idéia de que alguns sejam superiores a outros no campo da política.

É por isso que individualismo e liberdade são “valores duradouros”: uma vez descobertos – ou criados – pela humanidade, tornam-se essenciais para a civilização, pois só eles podem garantir o desenvolvimento de cada pessoa, e de cada pessoa em pé de igualdade com as demais, e o progresso contínuo da coletividade, do conjunto de cidadãos definido como algo mais do que um mero agrupamento de consumidores. Individualismo e liberdade tornam-se componentes da natureza humana, não a natureza humana entendida como bloco de dons oriundos da bondade divina ou da essência imutável do ser humano, mas a natureza humana vista como aquilo que se realiza nos homens em função de suas ações no mundo concreto.

No momento presente, no entanto, continua Dewey, os liberais proclamam a idéia de natureza humana apenas para validar as leis de funcionamento de um sistema econômico, o capitalismo. Fazem “conexão intrínseca e necessária entre democracia e capitalismo” como se fossem “ambos gêmeos siameses, de modo que se se ataca um, ameaça-se diretamente a vida do outro” (DEWEY , 1970, p.194). Dizem que o capitalismo, por propiciar o máximo de liberdade para a produção e a troca de bens, possui íntima relação com a democracia, entendida como regime que requer um indivíduo independente, dotado de iniciativa e vigor, livre para comprar e vender mercadorias, inclusive sua força de trabalho. Assim, o capitalismo seria o ambiente propício – o único ambiente propício, aliás – para a realização da verdadeira natureza humana que a democracia supõe. Qualquer tentativa de regular artificialmente o mercado seria, portanto, uma afronta à ordem democrática.

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Notas

1 - Professor-Adjunto (Livre-Docente) do Departamento de Psicologia da Educação e do Programa de Pós-Graduação em Educação Escolar da FCL/Unesp-Araraquara (SP).
2 - Pesquisa apoiada pelo CNPq.
3 - No Brasil, ambos foram publicados conjuntamente em 1970 no livro Liberalismo, Liberdade e Cultura, o qual será referenciado, daqui por diante, sem distinção dos ensaios que o compõem.
4 - Dewey exemplifica esta idéia por meio de Platão, cuja teoria sobre a ordem social ideal é baseada na observação de uma sociedade dividida em distintos grupos sociais, cada qual com uma função específica.
5 - Dewey ilustra esta idéia analisando as teses de Hobbes, para quem a competição é a causa de todos os infortúnios, e comparando-as às concepções liberais que afirmam ser a competição a causa geradora das riquezas.
6 - É por essas razões que Dewey se indispôs com o movimento pedagógico norte-americano chamado Educação Progressiva, ao qual recusou filiar-se (Kandel, 1959). Sobre essa divergência, ver o livro Experiência e Educação (Dewey, 1971).

Referências

DEWEY, J. Democracia e educação: introdução à filosofia da educação. 3. ed. Tradução Godofredo Rangel e Anísio Teixeira. São Paulo: Nacional, 1959a.
DEWEY, J. Reconstrução em filosofia. 2 ed. Tradução António Pinto de Carvalho. São Paulo: Nacional, 1959b.
DEWEY, J. Liberalismo, liberdade e cultura. Tradução Anísio Teixeira. São Paulo: Nacional, EDUSP, 1970.
DEWEY, J. Experiência e educação. Tradução Anísio Teixeira. São Paulo: Nacional, 1971.
KANDEL, I. L. Fim de uma controvérsia. Tradução Maria Helena Rapp. Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos, Rio de Janeiro, v.31, n. 74, p. 25-32, abr./jun. 1959.
MILLER, W. Nova história dos Estados Unidos. Tradução Thomaz Newlands Neto. Belo Horizonte: Itatiaia, 1962.

Palavras-chave:

John Dewey, política, Liberalismo, Escola Nova

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