John Dewey - Filosofia, Política e Educação - Parte III

por Marcus Vinicius da Cunha[1]

 

6 - Contra a Justificação da Democracia

Ao desenvolver sua análise sobre o raciocínio acima exposto, Dewey diz que seu equívoco é o mesmo de todas as teorias que vinculam a natureza humana à vida em sociedade. Todas elas começam pela observação da realidade existente “para descobrir as causas psicológicas e as fontes dos fenômenos sociais” (DEWEY, 197). Em seguida, traduzem os resultados de suas observações em leis sobre o funcionamento da mente humana e do indivíduo em coletividade, utilizando estas leis, por fim, para explicar a realidade. Procedendo assim, é claro que as conclusões a que chegam só podem ser consideradas corretas e competentes para explicar o que existe, uma vez que foram deduzidas do mesmo terreno ao qual agora retornam na forma de explicações.[4]

A esse processo Dewey dá o nome de “movimento reverso” e compreende que sua utilização se deva à necessidade de justificar o modo de vida democrático com base em alguma teoria. Ao desejar que a democracia exista e que se efetivem instituições sociais verdadeiramente democráticas, os defensores da democracia não se contentam em lutar para que tudo isso aconteça, necessitando encontrar uma razão para sua luta. Do ponto de vista deweyano, porém, não é necessário justificar a democracia por meio de artifícios teóricos sobre a natureza humana ou o psiquismo individual, pois o fundamento das teorias depende sempre do momento histórico específico em que são elaboradas, o que pode induzir a erros. Por exemplo, se a origem da idéia de democracia for buscada em um suposto impulso dos homens para a cooperação, pode também ser buscada em um suposto impulso para a competição.[5]

Para Dewey, é melhor admitir que cooperação e competição são apenas nomes que damos “para certas relações entre ações dos indivíduos, como elas realmente se concretizam em uma comunidade” (DEWEY, 1970, p. 200-201). Os impulsos – ou qualquer nome que se queira dar – formadores da natureza humana não são, em si, nem maléficos, nem benéficos. “Sua significação depende das conseqüências que realmente se produzirem, e estas dependem das condições sob as quais opere e com as quais entre em interação” (Ibid, p. 199). Deste modo, estão equivocados todos aqueles que procuram justificar a democracia por meio daquilo que se observa no capitalismo, como se democracia e capitalismo fossem irmãos siameses. Atribuir os fundamentos desse regime econômico a inclinações essenciais do homem, originárias da natureza humana, como o espírito empreendedor e competitivo, a avidez por lucros etc., é uma conseqüência daquele movimento reverso, nada além de uma psicologia deduzida da vivência do homem no mundo capitalista, psicologia esta que retorna, em seguida, para comprovar sua óbvia veracidade. Utilizar essas mesmas inclinações humanas para justificar a democracia é uma tentativa inútil – ou mal-intencionada.

Estão equivocados também aqueles que procuram justificar a democracia com base na existência de um espírito cooperativo, um impulso primário para a solidariedade ou algo assim. Este tipo de sustentação da democracia apela igualmente à natureza humana e é, da mesma forma, rejeitado por Dewey. Em seu livro Reconstrução em Filosofia, publicado em 1920, Dewey (1959b, p. 117) escreve: “O que na vida real é dificuldade e contratempo, torna-se na fantasia empreendimento notável e triunfo; o que na realidade é negativo será positivo na imagem esboçada pela fantasia; o que na conduta é vexame será altamente compensado na imaginação idealizadora”.

Com essas palavras, Dewey descreve um mecanismo muito comum da psicologia individual, quando a pessoa encontra-se diante de situações difíceis: escapar para um mundo idealizado, fantasioso, irreal, porém mais justo e mais belo do que o existente. Mas Dewey vai além desse mecanismo individual, mostrando ser este um dos traços marcantes da filosofia, a idealização de uma realidade suprema e última, um ideal estabelecido pela Natureza, por Deus ou pela História. Em seu apego à idéia de um mundo sem mudança, sem instabilidade, sem deficiência e sem imperfeição, grande parte dos filósofos, se não todos, de Platão e Aristóteles a Spinoza e Hegel, segundo Dewey, todos eles imaginam algum tipo de universo situado acima da experiência humana, habitado por Formas, Idéias ou Essências, o Absoluto ou a Razão.

Para Dewey, a democracia não se justifica por meio de teorias sobre a natureza humana, baseadas na observação do homem no momento presente, e muito menos por meio de fins últimos e transcendentes previamente estabelecidos. A democracia só faz sentido como imperativo moral, jamais como um imperativo psicológico ou filosófico.

A democracia é algo que desejamos que aconteça, independentemente de inclinações naturais humanas, sejam elas quais forem, independentemente da Verdade Última, seja ela qual for, porque julgamos que a vida democrática propicia o melhor para a experiência atual e futura da humanidade, por ser o único modo de vida que permite crescimento individual e coletivo. “Temos de ver que democracia significa a crença de que deve prevalecer a cultura humanística; devemos ser francos e claros em nosso reconhecimento de que a proposição é uma proposição moral, como qualquer idéia referente a dever ser” (DEWEY, 1970, p. 212).

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Notas

1 - Professor-Adjunto (Livre-Docente) do Departamento de Psicologia da Educação e do Programa de Pós-Graduação em Educação Escolar da FCL/Unesp-Araraquara (SP).
2 - Pesquisa apoiada pelo CNPq.
3 - No Brasil, ambos foram publicados conjuntamente em 1970 no livro Liberalismo, Liberdade e Cultura, o qual será referenciado, daqui por diante, sem distinção dos ensaios que o compõem.
4 - Dewey exemplifica esta idéia por meio de Platão, cuja teoria sobre a ordem social ideal é baseada na observação de uma sociedade dividida em distintos grupos sociais, cada qual com uma função específica.
5 - Dewey ilustra esta idéia analisando as teses de Hobbes, para quem a competição é a causa de todos os infortúnios, e comparando-as às concepções liberais que afirmam ser a competição a causa geradora das riquezas.
6 - É por essas razões que Dewey se indispôs com o movimento pedagógico norte-americano chamado Educação Progressiva, ao qual recusou filiar-se (Kandel, 1959). Sobre essa divergência, ver o livro Experiência e Educação (Dewey, 1971).

Referências

DEWEY, J. Democracia e educação: introdução à filosofia da educação. 3. ed. Tradução Godofredo Rangel e Anísio Teixeira. São Paulo: Nacional, 1959a.
DEWEY, J. Reconstrução em filosofia. 2 ed. Tradução António Pinto de Carvalho. São Paulo: Nacional, 1959b.
DEWEY, J. Liberalismo, liberdade e cultura. Tradução Anísio Teixeira. São Paulo: Nacional, EDUSP, 1970.
DEWEY, J. Experiência e educação. Tradução Anísio Teixeira. São Paulo: Nacional, 1971.
KANDEL, I. L. Fim de uma controvérsia. Tradução Maria Helena Rapp. Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos, Rio de Janeiro, v.31, n. 74, p. 25-32, abr./jun. 1959.
MILLER, W. Nova história dos Estados Unidos. Tradução Thomaz Newlands Neto. Belo Horizonte: Itatiaia, 1962.

Palavras-chave:

John Dewey, política, Liberalismo, Escola Nova

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