John Dewey - Filosofia, Política e Educação - Parte IV

por Marcus Vinicius da Cunha[1]

 

7 - Contra o Espontaneísmo Educacional

Conforme visto acima, com base nos textos da década de 1930, a filosofia política de Dewey pode ser assim formulada: só existirão instituições democráticas se houver convicção de que elas devem existir e se houver firme empenho para isto, o que significa organizar o ambiente de tal maneira que certas características dos indivíduos e da civilização sejam mais desenvolvidas que outras, o que implica alterar determinadas tradições de pensamento e ação contrárias à vida cooperativa. Enfim, a democracia não é um dado, é um projeto, uma experiência que levamos adiante porque julgamos ser este o melhor modo de vida – uma experiência que pode, aliás, não dar em nada. Por isso Dewey não acredita, como fazem os liberais, que se o homem for deixado à sua própria sorte, sem qualquer restrição externa, emergirão seus melhores instintos, aqueles que automaticamente conduzirão à vida democrática.

É nesse contexto de pensamento que a educação assume papel fundamental no ideário deweyano. A educação é vista como poderosa ferramenta a serviço da democracia, conservando determinados valores e incentivando a revisão de outros, contribuindo assim para o sucesso do projeto democrático. Eis o motivo por que as proposições educacionais de John Dewey afastam-se terminantemente de pedagogias que não possuam fins claros e bem definidos para o processo educativo: é porque Dewey pretende contribuir para a edificação de um mundo melhor no presente e no futuro, mas este é um projeto que pode não se realizar, se não for meticulosamente planejado. Não há nada que garanta a democracia, a não ser o esforço daqueles que nela acreditam, esforço que inclui o desenvolvimento de processos realmente educativos na escola.

A concepção educacional de John Dewey consiste em transmissão de conhecimento acumulado pela experiência humana, o que se traduz em desempenho ativo do adulto que detém esse conhecimento. Essa é uma proposição que muito se distancia das pedagogias escolanovistas que defendem a pura e simples abolição do mestre, das lições e dos livros, e creditam à espontaneidade da criança a responsabilidade por todo o processo pedagógico. Como se vê no livro Democracia e Educação, o pensamento deweyano caracteriza-se por uma nítida distinção entre educação informal e formal. No plano dessa obra, quando o autor deixa de analisar a transmissão de conhecimentos em qualquer ambiente educativo, momento histórico ou tipo de comunidade, e passa a tratar da escola situada na sociedade complexa e fragmentada em múltiplas especialidades, torna-se evidente a diferença que há “em permitirmos a ação casual do meio e em escolhermos intencionalmente o meio para o mesmo fim” (DEWEY, 1959a, p. 20).

Dewey caracteriza a escola como espaço planejado para o desempenho de funções educativas reguladas, o que exclui qualquer iniciativa de aproximação do ambiente formal com o ambiente informal, o que resultaria na diluição – e conseqüente esvaziamento – dos saberes que a escola deve ensinar, pois deixar livre o espírito infantil é deixá-lo à mercê de influências que podem levá-lo em direção contrária ao conhecimento. A esse respeito, Dewey (1959 a, p. 22) é categórico ao afirmar que cabe à escola “eliminar o mais possível os aspectos desvantajosos do ambiente comum, que exercem influência sobre os hábitos mentais”. Ao atribuir tal papel seletivo à instituição de ensino, Dewey a coloca em posição de contrariar inclinações negativas por certo presentes na vida social: “À proporção que uma sociedade se torna mais esclarecida, ela compreende que importa não transmitir e conservar todas as suas realizações, e sim unicamente as que importam para uma sociedade futura mais perfeita. A escola é seu principal fator para a consecução deste fim”.

Dewey considera que existe um “inconsciente influxo do ambiente” que exerce função educativa casual, como na formação de hábitos de linguagem e de apreciação de valores estéticos. Esses hábitos segundo DEWEY (1970, p.19), devem “ser corrigidos, ou mesmo suprimidos pelo ensino consciente”, podendo dar-se o mesmo com as idéias que assumimos no transcurso de nossa vida, no contato esporádico e não planejado com outras pessoas.

É sobre tais influências “inconscientes”, casuais e negativas, que a escola deve atuar, selecionando-as e afastando-as do ambiente educacional, o que mostra a relevância conferida por Dewey ao estabelecimento de fins educacionais situados em plano superior ao da experiência informal.

Há valores, hábitos e padrões que “jazem abaixo do plano da reflexão”, e estes precisam ser tornados conscientes pela escola, se ela quiser contribuir com a edificação de uma sociedade mais perfeita. As manifestações de “energia ainda indisciplinada” do educando são “sinais de possível crescimento”, confirma Dewey, mas precisam ser “convertidas em meios de crescimento, de transmissão de energia para a frente, e não toleradas ou cultivadas por si mesmas” – o que coloca a pedagogia deweyana em posição contrária a qualquer tipo de indulgência no estabelecimento de limites para as manifestações dos alunos (DEWEY, p. 20).

No pensamento deweyano, portanto, não há lugar para a espontaneidade da criança, se aceitarmos a idéia de liberdade como sinônimo de passividade do educador diante dos desregramentos do espírito infantil.6 Quando se dedica à interação entre professor e aluno, contato que se dá entre a sabedoria do primeiro e as inclinações naturais do segundo, Dewey não concede espaço senão para aquilo que tenha passado por um crivo externo, o crivo de uma escola conscientemente planejada em sintonia com as necessidades de um mundo melhor, pois o que move as postulações deweyanas é o projeto político de construção de uma sociedade mais humanizada – a sociedade democrática.

8 - Considerações Finais

Com a análise aqui esboçada, esperamos ter apresentado subsídios para futuras discussões sobre o desenvolvimento do ideário educacional renovador no Brasil, particularmente sobre o discurso escolanovista baseado na filosofia de John Dewey – tema referido no início destas páginas. Por ora, almejamos ter cumprido a meta de esclarecer alguns dos aspectos mais relevantes do pensamento político de Dewey, conforme a elaboração do autor em seus textos da década de 1930, mediante os quais a pedagogia deweyana assume claros contornos, posicionando-se contrariamente a qualquer tipo de espontaneísmo educacional. Com base na afirmação de que a democracia é um projeto ainda não realizado, que pode, portanto, fracassar, destaca-se a perfeita sintonia entre a filosofia política de Dewey e suas proposições para a educação escolar. A educação deve ser uma prática social comprometida com o futuro, para o que se faz necessário planejar criteriosamente o ambiente em que esta mesma prática se efetiva.

A título de contribuição final, gostaríamos de deixar sugeridos dois outros temas que podem ser analisados à luz do presente estudo. O primeiro, no campo estritamente político, diz respeito às reflexões de Dewey sobre o liberalismo, mais precisamente às suas críticas ao “velho liberalismo”. O pensamento liberal idealizado por John Locke, adequado ao campo da economia por Adam Smith e adotado desde o século XIX transformou-se, segundo Dewey, em instrumento de manutenção das desigualdades no capitalismo. Tal liberalismo assemelha-se em muito ao que hoje se conhece como neoliberalismo.

Diferentemente das políticas adotadas na era do New Deal, quando Dewey publicou os ensaios aqui analisados, e desenvolvidas pelo Welfare State, iniciado após a Segunda Guerra, o neoliberalismo sustenta a privatização de grande parte dos serviços públicos e a desregulamentação da economia para atrair investimentos ao setor produtivo, bem como o abandono de todos os mecanismos de proteção aos trabalhadores. Esse discurso, se não menciona explicitamente a idéia da “mão invisível” do século XIX, reserva ao Estado o papel de coadjuvante na política, retirando dos poderes públicos a competência e o dever de planejar o funcionamento da sociedade. Enfim, o neoliberalismo possui muitas – se não todas – as características do liberalismo criticado por Dewey.

O segundo tema, aqui apenas sugerido para futuras análises, decorre do primeiro e diz respeito às propostas educacionais que têm aflorado nesta era neoliberal. São propostas genericamente denominadas construtivistas, muitas delas adeptas do espontaneísmo criticado por Dewey: uma educação propensa a excluir a transmissão de conhecimentos formalmente estabelecidos, desenvolvida em um ambiente planejado para colocar a criança no centro do processo de aprendizagem e transformar o professor em um mero facilitador da aprendizagem. Tais proposições, que apregoam a capacidade de o aluno aprender de modo espontâneo e livre, possuem algumas características – se não todas – da pedagogia com a qual Dewey não se identificava.

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Notas

1 - Professor-Adjunto (Livre-Docente) do Departamento de Psicologia da Educação e do Programa de Pós-Graduação em Educação Escolar da FCL/Unesp-Araraquara (SP).
2 - Pesquisa apoiada pelo CNPq.
3 - No Brasil, ambos foram publicados conjuntamente em 1970 no livro Liberalismo, Liberdade e Cultura, o qual será referenciado, daqui por diante, sem distinção dos ensaios que o compõem.
4 - Dewey exemplifica esta idéia por meio de Platão, cuja teoria sobre a ordem social ideal é baseada na observação de uma sociedade dividida em distintos grupos sociais, cada qual com uma função específica.
5 - Dewey ilustra esta idéia analisando as teses de Hobbes, para quem a competição é a causa de todos os infortúnios, e comparando-as às concepções liberais que afirmam ser a competição a causa geradora das riquezas.
6 - É por essas razões que Dewey se indispôs com o movimento pedagógico norte-americano chamado Educação Progressiva, ao qual recusou filiar-se (Kandel, 1959). Sobre essa divergência, ver o livro Experiência e Educação (Dewey, 1971).

Referências

DEWEY, J. Democracia e educação: introdução à filosofia da educação. 3. ed. Tradução Godofredo Rangel e Anísio Teixeira. São Paulo: Nacional, 1959a.
DEWEY, J. Reconstrução em filosofia. 2 ed. Tradução António Pinto de Carvalho. São Paulo: Nacional, 1959b.
DEWEY, J. Liberalismo, liberdade e cultura. Tradução Anísio Teixeira. São Paulo: Nacional, EDUSP, 1970.
DEWEY, J. Experiência e educação. Tradução Anísio Teixeira. São Paulo: Nacional, 1971.
KANDEL, I. L. Fim de uma controvérsia. Tradução Maria Helena Rapp. Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos, Rio de Janeiro, v.31, n. 74, p. 25-32, abr./jun. 1959.
MILLER, W. Nova história dos Estados Unidos. Tradução Thomaz Newlands Neto. Belo Horizonte: Itatiaia, 1962.

Palavras-chave:

John Dewey, política, Liberalismo, Escola Nova

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